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Embora seja uma das mais tradicionais artes narrativas, a literatura sempre esteve à mercê da capacidade de compreensão e reflexão do povo (considerando as épocas e nações em que apenas os eruditos tinham ou têm acesso à cultura) e da oferta em escala proporcional ao número de leitores potenciais.
Mesmo sendo tomada como uma obra de grande relevância, ao que tudo indica a Odisseia de Homero deu início como uma tradição oral posteriormente convertida em projeto literário, ou seja, histórias contadas que depois foram reunidas em um livro. Foi somente do final do século XVIII, às primeiras décadas do século XX, que o romance como gênero literário explodiu em aceitação pública e consumo sempre crescente ao redor do mundo. A produção literária é, reconhecidamente, um dos grandes veículos da ficção e das narrativas da humanidade, seja no campo poético, seja na condição de prosa.
Mesmo contendo um universo rico em histórias, o livro, enquanto veículo da narrativa, é tido como uma obra “morta”, cujas palavras adquirem vida por meio da interação do leitor, como se vê nas palavras de Borges:
Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras – ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos – saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra (BORGES, 2001, p. 12).
É na estrutura poética e onírica do texto de ficção, mais do que na literatura acadêmica e, talvez, na poesia, que se encontram os exemplos de narrativa que propõem a imersão em ambientes estranhos ao leitor e, ainda assim, convidativos de conhecer, participar e vivenciar juntos aos personagens. Todorov usa a imagem do Fantástico como recurso para a produção literária, estabelecendo que
“O fantástico implica, pois, uma integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que o leitor tem dos acontecimentos narrados. Esse leitor se identifica com o personagem. ” (TODOROV, 1979, p. 151)
É Janet Murray, pesquisadora de narrativas digitais pela Ivan Allen College of Liberal Arts, quem complementa essa sensação de integração com o universo intangível da ficção ao resgatar o pensamento do crítico literário do século XIX, Samuel Taylor Coleridge, idealizador do princípio da suspensão voluntária da descrença como campo para a apreciação das narrativas poéticas. A percepção da autora sobre o tema, no entanto, vai além ao identificar que no fluxo da ficção virtual dos ambientes digitais “não suspendemos nossas dúvidas tanto quanto criamos ativamente uma crença”. Murray afirma que, em razão de nosso “desejo em vivenciar a imersão, concentramos nossa atenção no mundo que nos envolve e usamos nossa inteligência mais para reforçar do que para questionar a veracidade da experiência. ” (MURRAY, 1997, p. 111)
Samuel Taylor Coleridge, escritor e crítico literário do século XIX, na Inglaterra, desenvolveu a ideia das “Baladas Líricas”, a partir da qual, para apreciarmos adequadamente a poesia, precisaríamos nos afastar voluntariamente da realidade e imergir na ficção oferecida pelo texto. Nossos pensamentos deveriam voltar-se para o sobrenatural ou romântico, “de modo a transferir de nossa natureza interior um interesse humano e uma semelhança de verdade suficiente para procurar para essas sombras da imaginação aquela momentânea suspensão voluntária da descrença que constitui a fé poética. ” (COLERIDGE ,1817)
Chama-se de suspensão da descrença quando um leitor, espectador ou interator, aceita que as premissas de um trabalho de ficção sejam verdadeiras. Por exemplo: o Super Man é um alienígena do bem, que vive entre nós e usa seus superpoderes para nos proteger. Quando optamos por ler esse quadrinho, assistir a esse filme, ou jogar esse jogo, suspendemos o nosso julgamento das coisas que parecem impossíveis, fantásticas, imaginárias, para que o entretenimento possa se realizar. Se não fizermos isso, a narrativa será uma sequência de fatos absurdos que apenas ofendem a nossa inteligência, e não terá um efeito envolvente sobre nós.
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