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Independentemente do debate sobre as quests, parece inegável que elas sejam parte essencial das narrativas, apresentando com certo formalismo recorrente um roteiro que arrasta involuntariamente o protagonista para confrontos sempre grandiosos e a busca pelo restabelecimento da ordem nas histórias em quaisquer formatos e mídias. A própria gênese da narrativa nos sugere essas indicações, como propõe Todorov (1979) ao afirmar que
A narrativa se constitui na tensão de duas forças. Uma é a mudança, o inexorável curso dos acontecimentos, a interminável narrativa da ‘vida’ (a história), onde cada instante se apresenta pela primeira e última vez. É o caos que a segunda força tenta organizar, ela procura dar-lhe um sentido, introduzir uma ordem. Essa ordem se traduz pela repetição (ou pela semelhança) dos acontecimentos: o presente momento não é original, mas repete ou anuncia instantes passados e futuros. A narrativa nunca obedece a uma ou a outra força, mas se constitui na tensão das duas. (TODOROV, 1979, p. 21-22).
A constituição das quests, no entanto, envolve alguns preceitos e elementos determinantes e, especialmente no desenvolvimento de jogos, a observação criteriosa desses recursos será ponto fundamental para sua utilização em games que estabelecem uma narrativa épica a seus personagens.
Se, como afirma Barthes (1976, p. 25) “o ser humano é essencialmente um contador de histórias que extrai sentido do mundo através das histórias que conta”, será por meio desse recurso que se manifestará nossa condição como indivíduo e sociedade. É também aí que reside a forma como alcançaremos nossa audiência, cativando-os por meio de histórias capazes de expressar nossos valores.
A jornada do herói mítico de Campbell, como já visto na aula 02, expressa essa tensão de forças sugerida por Todorov, tornando-o figura central de momentos épicos de grandes proporções no universo ficcional, e também das situações dramáticas e impactantes, através das quais viverá seus tormentos e transformações. É ao longo dessa soma de ocorrências que se caracterizam e transcorrem as quests. Esse fenômeno está, provavelmente, entre os momentos mais marcantes da narratividade humana. A exemplo da catarse do teatro clássico, a qual propunha uma construção narrativa do espetáculo que levasse a um êxtase coletivo da plateia ou uma forma de expurgar de si seus piores demônios interiores, trazendo a todos a sensação de purificação, o conjunto narrativo elaborado pelas Quests nos oferece a saciedade das grandes realizações e estrutura para reflexão do que nos constitui como seres.
Se observarmos os games das mais recentes plataformas, veremos que muitas propostas contemplam estruturas narrativas que apresentam tramas elaboradas em contextos centrais e roteiros em subcamadas secundárias, com um panorama geral de vivência épica desenvolvida ao longo da resolução do conflito da trama e, paralelamente, no âmbito dramático, os conflitos internos do protagonista da ação. Vejamos como Todorov se refere a um dos poemas fundadores da narrativa clássica, a Odisséia, de Homero:
Ora, o narrador deseja narrar. Ulisses não quer voltar para Ítaca para que a história possa continuar. O tema de A Odisséia não é a volta de Ulisses para Ítaca, essa volta é, pelo contrário, a morte da Odisséia, seu fim. O tema da Odisséia são as narrativas que formam a Odisséia, é a própria Odisséia. Eis porque, voltando a seu país, Ulisses não pensa nisso nem se alegra. (TODOROV, 1979, p. 115)
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