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arrow_back Aula 10 - Documentação

4 - Mais algumas coisas que todo designer deve saber

O desenvolvimento de jogos envolve trabalhar construindo produtos para outras pessoas e, como em outras profissões, existem questões de responsabilidade social e ética que os profissionais da área devem estar atentos ao exercerem suas atividades profissionais. Até porque muitas vezes não temos uma noção concreta de o quanto um jogo pode afetar a vida de outras pessoas, seja de forma positiva ou negativa. Nesta seção traremos alguns pontos de reflexão, e espero que estes sejam guardados com muito carinho e atenção por vocês.

4.1 - Brinquedo ou arte?

Uma das principais dificuldades da indústria de jogos atualmente é sua dualidade entre ser um produto de entretenimento e ser um produto de expressão artística. Muitas vezes, um jogo que tenta estender os limites da reflexão, normalmente encontrado na indústria, acaba atraindo fortes críticas, as quais não seriam dirigidas caso a mesma reflexão fosse abordada através de um filme ou um livro. Isso se deve principalmente ao fato da indústria de jogos ser nova, praticamente uma criança perto das outras mídias de expressão artística, ainda sendo vista com algum preconceito por setores mais tradicionais, tanto da sociedade como do mercado. Logo algumas liberdades que são concedidas a livros e filmes não são levadas em conta quando se trata de jogos, o que não faz muito sentido, cá entre nós.

Um exemplo do que eu estou falando, quantos filmes sobre crime organizado existem por aí? Scarface, Poderoso Chefão, filmes sobre Billy the Kid. Em todos eles existe uma apresentação do mundo criminoso, com cenas fortes retratando a situação diária das pessoas envolvidas com essas organizações. E todos esses filmes não são nada menos do que obras-primas. Quer um exemplo mais próximo? Tropa de Elite e o nosso herói nacional, o capitão Nascimento.

Agora vamos nos remeter a um jogo que busca retratar o mesmo tipo de experiência e cenários que os filmes listados: GTA. O que você provavelmente encontrará por aí é que este é um jogo “muito violento”, “de mau gosto” e que “leva as pessoas para o mau caminho”. Dois pesos, duas medidas. Então por que isso ocorre? Qual a característica que torna o jogo tão distinto dos filmes?

Se você lembrou das aulas passadas e pensou em interatividade, acertou! O fato de que o jogador é quem toma as ações e executa a violência do jogo através dos controles faz com que o impacto nas pessoas seja muito maior do que nos filmes. Essa visão acaba levando a interpretações equivocadas do tipo de experiência ou história que é contada através do jogo.

Então a primeira dica que fica para vocês é: paciência! Esse tipo de coisa acontecerá até que os jogos passem a ser vistos, assemelhando-se a filmes e livros, como uma forma de arte narrativa e visual, e não meros passatempos de crianças. Até isso ocorrer, cabe a você saber defender com coerência as ideias apresentadas no seu design e o porquê de suas escolhas com relação ao contexto do jogo, aos personagens, à narrativa e ao estilo gráfico do jogo. E mais, seja responsável com o conteúdo apresentado no jogo e informe corretamente o público-alvo, de modo que o jogo não apresente informações inadequadas para crianças. GTA é um jogo voltado ao público jovem e adulto, não para crianças e adolescentes.

Alguns jogos conseguem ir além do entretenimento convencional e viram exemplos do potencial dos jogos como verdadeiras expressões de arte. <br> <span class='strong'>Jogo</span>: <span class='italico'>Journey</span>

4.2 - Estereótipos

Muitas vezes, estereótipos são usados para representação de grupos ou situações sociais dentro do nosso jogo. O problema com essa prática é que ela pode facilmente adotar um tom preconceituoso e/ou de chacota, e ofender pessoas que se identifiquem com um dos grupos representados. Sempre que um jogo aborda temas delicados como religião, gênero ou diferenças étnicas, é preciso tomar cuidado em manter uma visão clara e imparcial no momento de se apresentar a história e seus personagens.

Um problema comum em jogos é a caracterização estereotipada das personagens femininas. Historicamente, o desenvolvimento de jogos tem sua origem a partir de programadores e desenvolvedores de software, um público que em sua origem era predominantemente masculino. E o que isso originou? Uma gama de jogos com personagens masculinos como protagonistas, e não poucos no estilo Rambo, capazes de destruir exércitos inteiros de inimigos. Quando uma personagem feminina era introduzida na história, ela normalmente fazia o papel de mocinha em perigo ou interesse romântico do personagem principal, sempre como um papel secundário.

Alguns machões clássicos dos jogos mais antigos. <br> <span class='strong'>Jogos</span>: a) Duke Nukem, b) Contra, c) Double Dragon

Com o passar dos tempos, os jogos começaram a apresentar personagens femininas mais interessantes, assumindo papéis de protagonismo nos jogos. Lara Croft e Samus (Metroid) são ícones desse movimento de mudança e, atualmente, existem vários jogos com personagens femininas fortes como protagonistas. O problema é a forma como alguns desses jogos retratam essas personagens. Principalmente em jogos de RPG, em que aparentemente a armadura melhora à medida que ela diminui de tamanho (acho que os desenvolvedores ainda precisam amadurecer!). Apesar do protagonismo, as personagens ainda são, na maioria das vezes, construídas sob uma ótica sexista dos desenvolvedores.

Versões masculinas e femininas de armaduras em jogos de RPG. Isso não fez nenhum sentido!

Apesar disso, já existem bons exemplos de jogos nos quais as personagens femininas conseguem o protagonismo e não são tratadas de forma vulgar, como a Faith do jogo Mirror’s Edge, a garotinha do jogo Never Alone e a própria Lara Croft nos jogos mais novos da série Tomb Raider. Não só as personagens são fortes e possuem uma personalidade forte e um arco de história bem construído, como o foco da história independe do aspecto físico delas. Um dos fatores que contribuíram significativamente para esse aumento da qualidade dos jogos produzidos foi a crescente participação de mulheres no desenvolvimento de jogos profissionais.

Com a participação crescente de mulheres na produção dos jogos, o nível de qualidade dos personagens femininos também cresce! <br> <span class='strong'>Jogos</span>: a) Mirror’s Edge b) Tomb Raider

Existe um teste chamado Teste de Bechdel, que costuma ser aplicado a narrativas para avaliar se a história foi construída sob uma ótica machista ou não. Avalia-se a narrativa em função das seguintes perguntas:

  • Existe mais de uma personagem feminina no jogo?
  • Essas personagens interagem dentro da história?
  • A interação das personagens é centrada em assuntos que não sejam apenas o interesse em um personagem masculino?

Parece besteira, mas muitos filmes, livros e jogos falham nesse simples teste. Apesar de não ser uma ferramenta definitiva, ela pode dar um indício inicial se sua narrativa está carregada de uma visão sexista sobre os personagens femininos existentes no jogo. Também existem outras versões do teste que podem ser aplicadas para identificar outros tipos de estereótipos!

A lição que fica é: use estereótipos com moderação! Apesar de facilitarem a representação de grupos sociais e trazerem uma certa familiaridade para o jogador, eles podem cruzar o limite do bom gosto e tornar o seu jogo ofensivo e superficial. O uso é aceitável quando você está fazendo uma narrativa com uma veia cômica e com estilo de paródia, mas de forma que o estereótipo passa a ser uma crítica, e não apenas uma representação. É interessante que esse aspecto seja avaliado nos testes para sentir se existe um repúdio sobre a forma que determinados personagens são representados dentro do jogo.

4.3 - Jogos Viciantes

Você com certeza já ouviu alguém falar que videogames viciam. Seja um amigo seu que está “viciado” ou a mãe de algum deles reclamando que o menino só joga e não estuda, existe uma intuição sobre a capacidade de videogames em viciar os seus jogadores. Ou a mídia fazendo matérias sensacionalistas, sem um fundo científico ou de pesquisa sobre o assunto. Mas essa intuição às vezes está correta: dependendo de como for construído, o jogo detém sim o potencial para se tornar uma atividade viciante.

Calma! Não precisa parar de jogar videogame e ir para uma clínica de reabilitação por causa disso! Vou explicar melhor: existem alguns jogos que utilizam técnicas da psicologia em seus designs para aumentar o engajamento do jogador de uma forma, digamos, preguiçosa. Ou seja, jogos que não são construídos dentro desse arcabouço de técnicas não são viciantes como drogas ou álcool, apenas divertidos!

Se você gosta de jogos Massive Multiplayer Online – MMO, talvez você já tenha vivenciado uma experiência como a que vou descrever agora: você inicia o jogo, realiza as quests iniciais e começa a construir o seu personagem, ganhando níveis e itens e habilitando novas áreas para interações. À medida que você progride no jogo, começa a passar horas e horas repetindo a mesma ação (grinding) apenas para obter um item, completar uma quest ou subir de nível. As atividades que no começo eram divertidas logo se tornam enfadonhas e repetitivas, e você apenas as repete mecanicamente para obter a próxima recompensa, não tendo mais nenhum prazer em fazer essa ação. Você é praticamente “obrigado” a jogar. Se identificou com o cenário? Pois deixe-me contar uma historinha de como tudo isso começou.

Era uma vez um psicólogo chamado B.F. Skinner. Ele trabalhou em uma teoria comportamental chamada de Condicionamento Operante, a qual propõe que o comportamento de uma pessoa pode ser moldado através de estímulos de recompensas e punições. Dessa forma, sempre que uma pessoa realiza uma atividade desejável, ela recebe uma recompensa, e sempre que um comportamento indevido acontecer, ela deve ser punida, permitindo programar um padrão de comportamento. Para validar sua ideia, Skinner construiu uma caixa com um botão e colocou um rato dentro. O rato foi treinado para acionar o botão, e sempre que isso acontecia, ele recebia uma porção de comida. Após o comportamento ter sido ensinado ao animal, Skinner realizou testes aumentando o intervalo em que a recompensa era oferecida e percebeu que o rato continuava apertando o botão até que ele conseguisse receber a recompensa, porque era o resultado que ele esperava para aquela determinada ação.

Um jogador de <span class='italico'>Farmville</span>.

E o que isso tem a ver com jogos viciantes? Vamos ver o que normalmente acontece com jogos de MMO: você começa em um nível baixo e rapidamente consegue progredir no jogo. A cada combate vencido e missão completada, você ganha pontos de experiência que permitem escolher habilidades e magias para o seu personagem; ganha dinheiro que permite comprar novos itens e equipamento, e por aí vai. O problema é que, com o tempo, a frequência com que essas recompensas são oferecidas diminui (às vezes, drasticamente). Dessa forma, é necessário que se complete cada vez mais missões, derrote-se mais inimigos e passe mais tempo jogando para se conseguir a mesma quantidade de recompensas que poderiam ser obtidas em poucos minutos de jogo anteriormente. Já deu para ver como o jogador se parece com o ratinho da gaiola?

A utilização das técnicas de Skinner permitem programar um sistema de recompensas que fisga o jogador com seu ritmo inicial, mas que vai forçando-o a sessões cada vez mais longas do jogo para conseguir obter o mesmo nível de satisfação das sessões iniciais. Esse engajamento não é baseado em diversão, e sim no comportamento condicionado pelo sistema de mecânicas. Alguns jogos inclusive utilizam esse recurso para tentar forçar o jogador e investir dinheiro no jogo, seja pela aquisição de itens ou para pular sessões de jogabilidade repetitiva. Isso não só é um tremendo golpe baixo, como também demonstra um design preguiçoso e descuidado do jogo! E se a pessoa possui uma predisposição ao vício, isso pode se tornar um verdadeiro perigo, da mesma forma que substâncias químicas ou bebidas alcóolicas.

O uso desse tipo de mecanismo é uma forma rápida de fazer o jogador investir tempo dentro do jogo, mas sem prover uma experiência realmente significativa para ele. Então a dica que fica é: muito cuidado com a construção dos seus sistemas de recompensa dentro do jogo. Você deve desejar que o jogador fique “viciado” no seu jogo no bom sentido: que ele se divirta o tempo todo, e jogue porque quer, e não porque ele precisa ou se sente obrigado a isso!

4.4 - Acessibilidade

Esse é um tema recente no mundo dos jogos, porém há muito tempo discutido no âmbito social em geral. Jogos acessíveis são jogos que levam em conta as necessidades especiais que os jogadores podem apresentar. Essas dificuldades normalmente ocorrem em um dos três momentos do ciclo de feedback da informação: leitura/captura da informação do mundo do jogo, processamento e tomada de decisão, e execução dos comandos necessários para controlar o jogo.

Cada tipo de necessidade afeta a capacidade do jogador de interagir em um ou mais dessas fases: pessoas com necessidades sensoriais (problemas com visão e audição, por exemplo) têm dificuldade de captar todo ou parte do feedback provido pelo jogo. Pessoas com necessidades cognitivas (dislexia, déficit de atenção) podem apresentar dificuldades em formar o processo de tomada de decisão do jogo em tempo hábil. Pessoas com dificuldades motoras podem não conseguir realizar a sequência de comandos necessária para efetuar as operações no jogo.

Para contornar essas dificuldades e adequar o jogo a esse público-alvo, é necessário pensar em formas alternativas de representar mecânicas ou na adaptação da interface do jogo. Uma coisa é certa: é mais fácil tornar um jogo acessível se ele já é concebido com esse cuidado desde a concepção do projeto do que adaptar um jogo já pronto. Já discutimos isso, não? Mudanças que são feitas nas fases de concepção e pré-produção tendem a ser menos custosas do que mudanças realizadas em fases posteriores, ou quando o projeto já foi finalizado.

Existem diversas iniciativas de estudo na área de acessibilidade em jogos, sendo ainda um campo que está dando os seus primeiros passos na indústria. A necessidade de se desenvolver essa área cresce com a aplicação de jogos em situações que vão além do puro entretenimento. Pense comigo: se usaremos um jogo como ferramenta para ensinar um determinado assunto na escola, é importante que todas as crianças possam jogá-lo, correto? Não podemos fazer um jogo que só poderá ser usado por uma determinada parte da turma, privando outra do potencial de aprendizado pelo jogo!

No portal do projeto Game Acessibility (no link http://game-accessibility.com/) existe uma série de recursos que podem ser consultados, com esforços conjuntos tanto da academia como da indústria em investigar e criar conteúdos e soluções para jogadores com necessidades especiais. Seja na interface, controles, no design do jogo ou na inclusão de profissionais com algum tipo de necessidade especial, o processo de produção de jogos só tem a ganhar.

Jogos para todos!

5 - Fechando o ciclo

E com isso fechamos a nossa disciplina!

Espero que ela tenha sido uma fonte de inspiração e descoberta para vocês. Além de divertida!

Para aqueles que ainda estão começando, não se preocupem: vocês não deveriam terminar essas aulas como designers experts capazes de fazer qualquer jogo! O que espero de vocês é que tenham se tornado aprendizes de design curiosos, com vontade de estudar mais sobre o assunto e pesquisar outras fontes para aprender essa disciplina tão importante para os jogos, digitais ou não.

Para os mais experientes, espero que essas aulas tenham refrescado as suas memórias, fazendo-os lembrar do tempo em que ainda estavam começando a estudar esses conceitos. E quem sabe, talvez até tenham aprendido coisas novas!

Daqui para a frente, espero ver todos colocando em prática o que aprenderam aqui para construir vários jogos! E também estar jogando eles logo, logo. Lembrem-se do desconto do Professor, combinado?

Sigam firmes! Até uma próxima aventura :)

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