Outras Narrativas

Por fim, uma outra qualidade de produção tem se mantido nos projetos de design de games e se caracteriza pela criação de trabalhos em campos diversos, mas que atendem ao fato de não serem classificáveis nas etapas anteriores desse estudo, constituindo jogos cuja narrativa não está facilmente identificável.

Um exemplo deste modelo de ação são os jogos simuladores, nos quais o protagonismo está presente (como visto na Aula 01), mas a progressão da ação não parece determinada por um arco diegético. Ainda assim, também nesses casos é possível abstrair alguma poética, ao estabelecermos relações humanas entre personagens de The Sims (mesmo que se trate apenas de projeções de nossos anseios sobre a sistêmica da ação do jogo), ou nos sentirmos momentaneamente estrelas em uma turnê de sucesso durante um período de jogo de Guitar Hero com os amigos. Sensação semelhante se dá nas conquistas de etapas de um jogo de corridas e até mesmo na superação de um estágio de jogos de administração de recursos e processos, como Rollercoaster Tycoon ou Sim City.

Nesse quesito também se enquadram os God Games, nos quais o jogador assume o papel de uma entidade acima do mundo do jogo e comanda o cotidiano do lugar, segundo suas vontades e humores. Os desdobramentos decorrentes de tais atitudes, mas também da inteligência artificial do jogo, podem levar a situações das mais inesperadas, criando momentos memoráveis, ainda que o protagonismo nesses casos pareça indireto e as histórias criadas digam sobre os resultados no jogo, mais do que para o jogador.

Um game composto de uma história e também de uma progressão narrativa, mas cuja fruição não se alinha aos jogos diegéticos é Myst, criado pela empresa Cyan e lançado em 1993. Sua história gira em torno de uma região dotada de belas paisagens, cuja história, envolvendo um pai e seus dois filhos, se desenrola à medida que pistas são encontradas nos diversos cenários estáticos. Ao final, uma decisão do jogador pode definir um resultado satisfatório ou selar o destino do personagem do jogador, que em nenhum momento se revela outro que não nosso próprio avatar não-visível online.

Passage, art game de Jason Rohrer, 2007, por sua vez, apresenta-se como um inusitado game, que dura exatos cinco minutos, jogado na curiosa resolução de 100x16 pixels, incluindo imagens e borda lateral, renderizada em pixels com 256 cores. Mais do que uma diversão em estética retrô, o game propõe uma jornada que leva ao jogador sensações de amor, perda e morte, em uma corrida pela vida.

Mesmo sem contar uma história, o game nos envolve com inesperada carga dramática, como cita o artigo de Felan Parker (2005, p. 53) ao reproduzir a opinião de um blogueiro, que afirmava: “O que eu sempre quis ver era um jogo que pudesse evocar lágrimas de alegria ou de entendimento; um tipo de ‘tristeza formosa’ que aparece em um momento de verdade revelada ou inspiração sincera” (PARKER, 2005, p. 53). Outros projetos se enquadram no inusitado quesito de oferecerem ao jogador interator a oportunidade de vivenciar uma trama narrativa por meios não diegéticos, isto é, sem fazer uso literal do “contar histórias”.

O filósofo Walter Benjamin (1892-1940) propunha que as melhores narrativas escritas eram aquelas que mais se aproximavam das histórias orais contadas por inúmeros narradores anônimos e chegou a crer que, com a chegada dos tempos modernos, a arte da narrativa estaria efetivamente esquecida, afirmando ser “cada vez mais raro encontrar pessoas que saibam narrar qualquer coisa com correção” (BENJAMIN, 1992, p.27).

Talvez com a combinação proporcionada pelos recursos imersivos digitais dos games e o desejo ainda latente de contar histórias, estejamos escrevendo um novo capítulo da arte narrativa na humanidade.

LUDOLOGISTAS E NARRATOLOGISTAS

Alguns autores e críticos dos meios digitais interativos observam que, diferentemente do que acreditamos, os jogos digitais constituem-se apenas como processos formais de regras e não como espaços de vivência imersiva na fantasia ali produzida. Esses pensadores constituem a ala ‘Ludologista’, que se contrapõe àqueles que veem no game (e nos jogos) um veículo narrativo que, em muitos pontos, atualiza essa cultura ludogista. Para os ludologistas, faz-se necessário a elaboração de novas teorias de significação capazes de dar conta das mecânicas e das singularidades do meio, tendo em vista que os jogos, enquanto simulação, e as narrativas partilham de elementos comuns, ainda que difiram em seus desdobramentos. Sendo um dos mais ativos defensores da Ludologia, Espen Aarseth comenta que:

Os jogos de computador, com meros 40 anos de existência, representam os últimos poucos segundos de uma longa história de contação (storytelling, no original). Claramente, quando comparamos histórias com jogos de computador, as histórias sustentam uma posição muito mais robusta, a qual os games não podem sequer sonhar em um breve futuro. (AARSETH).

Esta é a versão otimista: jogos de computador estão começando agora como uma mídia narrativa. No entanto alguns os veem de forma pessimista. Nas palavras de um importante teórico de literatura escandinava, os jogos de computador são o sinal da decadência cultural.

Ao final do texto, Aarseth observa que, independentemente do tipo de jogo, inclua ele narrativas ou não, os jogos não serão chamados por outros nomes como “novelas digitais”, “Websoaps”, nas palavras de Murray (ano) ou outro termo qualquer:

Cada vez mais avançados, com inteligência artificial de verdade e simulação de mundos ainda mais sofisticada, os jogos multiplayer online ditarão a agenda do estudo de games nos próximos anos. Mas provavelmente, não serão chamados de jogos multiplayer online por muito tempo, ou mesmo de ‘narrativas interativas’. Apenas jogos. (MURRARY, 2013).

Alguns pensadores ludologistas, além de Aarseth, são: Jesper Jull, Gonzalo Frasca e o radical Markku Eskelinen. Em contrapartida, estudiosos das propriedades diegéticas dos games buscam caminhos e argumentos que possam legitimar essas ideias. Janet Murray, talvez a maior defensora e figura de longos debates com ludologistas, chegou a comentar na rede que estes pesquisadores parecem “dispostos a descartar muitos aspectos salientes da experiência de jogo, como a sensação de imersão, a promulgação de eventos violentos ou sexuais, a dimensão performativa do jogo e até mesmo a experiência pessoal de ganhar e perder”, com diz Murray (2013).

Em linhas gerais, os Narratologistas destacam a importância dos videogames como contadores de histórias tanto quanto outras mídias de difusão e defendem tais experiências como “cyberdramas” mais do que mero entretenimento. Para esses pensadores, o meio digital proporciona não apenas espaço para adentrar o ficcional, mas vivenciar suas histórias, inclusive sob o ponto de vista do outro. Além de Janet Murray, há outros profissionais de renome acadêmico que se dedicam a estudar a narratologia nos games, como Lev Manovich, Richard Grusin, Michael Mateas e Andrew Stern, entre outros. Termos como imersão, agência e transformação são temas que auxiliam na compreensão dessa linha de estudo, disponibilizados nas apostilas deste curso.

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