Jogos sem história

Muitos games, especialmente aqueles desenvolvidos no limiar da história do entretenimento digital, como Pong, ou recentemente nas redes sociais, como as "fazendinhas", não contam, necessariamente, uma ‘história’, uma ficção com começo, meio e fim, como vimos na definição aristotélica.

Jogos precursores, como Space Invaders, Computer Space e River Raid, ou projetos mais recentes como Candy Crush e Fifa Soccer, não contam uma história, como podemos perceber em Super Mario Bros ou Bioshock, que narram as sagas de seus personagens principais e, eventualmente, secundários. Ainda assim, não deixam de sugerir um potencial narrativo.

Embora os primeiros jogos eletrônicos fossem extremamente básicos na criação de ambientes e cenários, seus designers foram imensamente criativos ao fazer uso das limitações dos recursos para criar espaços verossímeis dentro das possibilidades.

Não por acaso, os primeiros elementos de design de games para as máquinas arcades foram alienígenas e naves espaciais, objetos que não necessitam ter proximidade conceitual com qualquer item ou elementos verdadeiramente existentes. Isso facilitou a imersão ao propor ao jogador a abstração da realidade presente, fazendo-o mergulhar em um universo diferente e inovador, onde o desafio de encontrar e vencer seres estranhos era mais interessante e divertido do que buscar sentido e lógica. Somente esta ideia já nos aproxima do conceito de Coleridge da suspensão voluntária da descrença, como visto na aula anterior.

Carl Terrien, em um estudo realizado em 2003, já observava que “o refinamento da ilusão parece ser, de fato, a importante força motriz da evolução dos jogos de vídeo”. Para o autor, já no início, fruto da falta de qualidade gráfica, os games apelavam para uma outra interpretação narrativa:

Nos videogames a representação visual começou do zero; algumas formas, algumas cores. Os primeiros jogos de arcade, Computer Space (1971) e PONG (1972), propunham universos contundentemente abstratos que poderiam, contudo, ser associados com referências do mundo real (ficção científica e tênis de mesa). A popularidade dos temas espaciais nos jogos iniciais não é surpreendente; a despeito do interesse dos programadores em ficção científica, um fundo negro podia descrever o vazio espacial com custo mínimo em termos de recursos de sistema favorecendo, portanto, gêneros como o de atirar. (THERRIEN, 2003).

Perceba que, assim como esses jogos, outros projetos faziam uso de contextos externos capazes de sustentar a ideia da história por trás dos jogos.

Space Invaders (1978), por exemplo, teve clara inspiração em A Guerra dos Mundos, obra literária de H. G. Wells (1866-1946) que apresentava a ameaça de seres alienígenas sobre a Terra. Porém, para além desse fato, vale ressaltar que o próprio período de lançamento do arcade contribuía para interpretações de outra ordem, como o fato de potências como os Estados Unidos e a então União Soviética medirem forças na Revolução Iraniana, em 1979, em um conflito que já se prenunciava na época. Os temores da Guerra Fria mantinham alerta a população global e a ameaça externa presente no jogo era uma metáfora das angústias vividas.

De mesma forma, Computer Space, criado por Steve Russel e seus parceiros do MIT, exprimia a inquietude dos conflitos internacionais. Paul Steed, Diretor de Criação da Atari, traria a melhor definição do trabalho, no documentário “A Era do Videogame”, produzido para a TV pelo Discovery Channel, ao atestar que o jogo criado era “um reflexo da época”:

“Existia aquela paranoia com os soviéticos. Um medo de os comunistas atacarem, e o jogo atingia diretamente o inconsciente coletivo da sociedade, que dizia 'estamos com medo, a guerra pode estourar’”. (A Era do Videogame, 2007)

Da mesma forma, Janet Murray (1997) analisa a maneira como jogos não narrativos podem apresentar inúmeras mensagens em outra perspectiva. Para a autora, Tetris é um exemplo desta condição:

Esse jogo é uma encenação perfeita da vida sobrecarregada dos norte-americanos nos anos 90 – do constante bombardeio de tarefas que exigem nossa atenção e que devemos, de algum modo, encaixar em nossas agendas superlotadas, não sem antes limparmos nossa mesa de trabalho a fim de abrir espaço para o próximo e violento assalto. (MURRAY, 1997 p. 142).

Seguindo a mesma linha, Nik Kelman avaliou que, mesmo sem possuir um personagem central a quem possa atribuir a jornada do herói, jogos considerados casuais não podem ser descaracterizados por uma suposta ausência de narrativa. No livro Video Game Art, o autor afirma que:

Se restringirmos o termo ‘protagonista’ à sua mais simples definição, como uma entidade física no centro de algum tipo de ação, todos os jogos têm um protagonista [...] com frequência os games [dos anos 80] não tinham qualquer narrativa e ainda assim mantinham a atenção do jogador por horas. Porque? Porque esse jogador estava controlando alguma entidade distinta (ou protagonista). (KELMAN, 2006, p. 31).

À figura do protagonista podemos agregar a imagem de hipokrites, ou ator, como visto no início dos cortejos que deram origem ao teatro na Grécia antiga.

Torna-se importante citar nesse ponto a ideia de uma narrativa não-diegética, isto é, não ligada ao conceito de narratologia, como acontece nas obras literárias, dramatúrgicas e cinematográficas, que dão fruição à dimensão ficcional da narrativa.

Diegése é um conceito de narratologia, literatura, teatro e cinema, relacionado à dimensão ficcional de uma narrativa. O tempo e o espaço diegéticos são o tempo e o espaço que existem dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências. Nos jogos é identificada pelo Game World, o universo de elementos que podemos encontrar em um determinado título. Personagens, objetos e ações são ditos intra-diegéticos, e menus, mapas e outros elementos da interface gráfica são extra-diegéticos.

Alexander Galloway, professor-associado na Universidade de New York, analisa os jogos em quadrantes conceituais, que ele chama de quatro momentos de ação dos jogos. O autor opõe eixos diegéticos e não-diegéticos e máquina e jogador (ou operador, como prefere determinar), como podemos ver na figura 1 a seguir:

Modelo de Galloway.

Resumidamente, um dos quadrantes responde pela dimensão Diegético-Maquínica, como as sequências fílmicas e cutscenes, e o segundo, contrariamente, pelas ações não-diegéticas do jogador, a exemplo da escolha de opções e menus do game ou até mesmo o pausar e retomar do jogo durante uma partida. O terceiro quadrante regularia os atos diegéticos do jogador, como o andar e pular de um personagem ou o mover de peças (como em Tetris). Por último, o quadrante final, relacionado aos atos não-diegéticos da máquina, operacionaliza questões como os powers ups (especiais), interfaces HUDs (Head up Displays), ajustes dinâmicos de dificuldade, entre outros. Além de powers ups bem elaborados, que quase não são percebidos como não-diegéticos (como recarregar a saúde da personagem, recolher munição ou proteção automaticamente), e o trágico momento do Game Over também se inserem nessa classificação.

Diferente das classificações convencionais (jogos e não-jogos, histórias ou mecânicas, e máquinas e humanos), esse sistema leva em conta a complexidade dos jogos e oferece igual complexidade nas definições apresentadas. Você pode entender melhor esse sistema neste artigo, ou no livro do próprio autor, em inglês.

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