Jogos com histórias e roteiros

A partir de um determinado ponto na evolução dos videogames, a criação de roteiros passou a fazer parte do desenvolvimento destes. Desde os jogos mais simples como King’s Quest, criado por Roberta Williams para PC pela Sierra Online, em 1984, até Red Dead Redemption, produção recente lançada para os consoles atuais e PC.

Roberta Williams enfatizou em entrevista concedida em 2007 a importância da estrutura narrativa para seu trabalho pioneiro:

[...] eu sempre penso primeiro na história, personagens e mundo de jogo. Eu precisava entender tudo isso antes de começar a pensar a respeito de qualquer estrutura de produção, engine ou interface. (WILLIAMS, 2006).

A criadora salientou também que o primeiro King´s Quest não era “nada além de um grande conto de fadas”, que os jogadores poderiam experimentar de forma lúdica e interativa, em vez, como afirmou, “da velha forma passiva dos livros, filmes e contos orais.” [sic!]

Muitos profissionais do desenvolvimento de games se mostram atentos a detalhes que enriquecem os trabalhos do ponto de vista narrativo, como um roteiro elaborado, personagens críveis e cativantes e elementos que tornam a experiência imersiva memorável, criando vínculos com o jogador.

Esse é o caso de Bioshock, projeto idealizado e roteirizado por Ken Levine, diretor criativo da Irrational Games, em 2007. O autor, que já detinha uma vasta experiência com roteiros para séries de TV e cinema, além da produção de jogos, defendia arduamente que os games poderiam aprofundar suas narrativas. Bioshock foi o resultado de pesquisas que envolveram o aproveitamento da filosofia do Objetivismo proposto por Ayn Rand na década de 1920, a criação de uma ficção distópica, o protagonismo dramático de um personagem que se descobre parte de um todo e muitos elementos que contribuíam para oferecer uma experiência imersiva e narrativa sem precedentes em games. Como explica o jornalista Harold Goldberg:

Até Bioshock, a arte de escrever havia conquistado pouco respeito na maioria dos videogames. O padrão era um esboço a partir de ‘A filha do Presidente foi raptada. Você é durão o bastante para trazê-la de volta?’ Mesmo hoje a maioria dos designers de game espera que as palavras não signifiquem muito em qualquer jogo. (GOLDBERG , 2011).

A intenção de criar contextos narrativos diegéticos para os games, no entanto, iniciou-se muito antes. Na saga de Super Mario Bros (1985), o personagem busca vencer os desafios de um ambiente fantástico para salvar a princesa, ou mesmo em Donkey Kong, de 1981, no qual, da mesma maneira, o predecessor de Mario, Jumpman, atira-se contra os obstáculos para resgatar a jovem Pauline raptada por um gorila mal-encarado. Jeff Ryan levantaria impressões poéticas sobre este jogo, ao observar que Miyamoto, após a negativa recebida para usar o marinheiro Poppeye no arcade, ateve-se à essência do projeto: “combater o vilão para salvar a garota”.

Esses arquétipos de histórias narradas [storytelling, no original] fizeram do herói um azarão, deram-lhe um motivo nobre para lutar e ainda ofereceram alguma simpatia ao vilão. (RYAN, 2011, p. 30)

Para além dos alicerces estabelecidos por Aristóteles à narrativa, tais comportamentos encontram eco na definição de monomito de Joseph Campbell, que identifica a invariabilidade básica do modelo dramático do herói ao atestar: “a aventura do herói costuma seguir o padrão da unidade nuclear: um afastamento do mundo, uma penetração em alguma fonte de poder e um retorno que enriquece a vida”. (CAMPBELL, 2005, p. 40).

Em termos dramáticos, no entanto, talvez poucos games tenham sido tão aclamados quanto Final Fantasy VII, que oferecia, em 1997, uma densa trama envolvendo a luta em favor de um mundo e seus habitantes contra uma poderosa corporação, com direito a traições e morte. Também nesse caso, a estrutura clássica dos contos épicos é dada pela fórmula adotada, como indica esta análise:

[…] a função narrativa [de Cloud Strife] como um herói mercenário que desafia a implacável corporação Shinra e seu herói anterior, agora seu inimigo e nêmesis, Sephiroth, é típico do papel dos heróis na narrativa popular e, em muitos aspectos, uma das fórmulas típicas de personagens das bem conhecidas análise de narrativas folclóricas de Propp. (BURN, 2004).

Obras como Red Dead Redemption (2010), Assassin’s Creed II (2009) e a franquia Metal Gear Solid, entre outras, talvez configurem a “fina arte” de uma narrativa diegética para a nova safra de games, ao proporcionar ao jogador uma sensação de autoconhecimento, na plenitude de suas experimentações com o mundo do jogo, uma relação de subjetivação ou de domínio sobre si, consolidando sua condição de indivíduo mais do que como ser corpóreo. Ou, nas palavras de Foucault (1985, p. 234), “procedimentos pelos quais se exerce seu controle sobre si próprio e da maneira pela qual se pode estabelecer a plena soberania sobre si”. Esse pensamento está alinhado aos preceitos idealizados por Aristóteles, no que tange à construção de padrões narrativos, e une-se também a um modelo de ação pelo qual projetamos nossa própria existência em uma experimentação que nos complementa e aperfeiçoa dentro e fora do digital. É Lucia Santaella quem identificará o corpo como uma superfície intermidiática, mediadora entre o presencial e o virtual, como acontece na troca interdimensional e sociodigital com games, como atesta:

Com a entrada na era digital e virtual, o espaço real em 3D no qual o corpo se movimenta, dilata-se sob o efeito do transporte da mente pelos espaços multidimensionais da ciber-realidade. (SANTAELLA, 2004, p. 74)

Em todo caso, fica evidente o papel transformador da experiência proporcionada pelos games. No caso dos jogos “com história”, não faltam exemplos de produções elaboradas de forma consistente e outros projetos que se mostram menos criativos em sua abordagem geral ou narrativa, mas todos plenos em oportunidade de operacionalização desse fenômeno. Um bom exercício poderá ser a busca de identificação desses elementos nos jogos, bem como suas qualidades estruturais e potenciais falhas de construção.

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