Exemplos de Flow

“Você está lá em seu trabalho, você perde o seu sentido de tempo, você está completamente extasiado, você está completamente preso ao que você está fazendo… não há futuro ou passado, é apenas um presente prolongado em que você está fazendo algo significativo… Poeta Mark Strand, 1991”

Assim apresentou Mihaly Csikszentmihalyi seu conceito de Flow à audiência da palestra “Flow e Qualidade de Vida”, em Moscou, em 2012. No mesmo material, o pesquisador apresenta as impressões de outro profissional, Joseph G. Gall, biólogo celular, que afirmou em 1991:

“Entrar em uma sala escura, olhar pelo microscópio e ver esses objetos brilhantes que podem estar se deslocando ou podem estar parados, e em cores diferentes – é um videogame, se você preferir. É simplesmente tão bonito… Eu posso sentar na frente de um microscópio por três ou quatro horas em um momento, apenas olhando para o material e analisá-lo… Eu posso me tornar constrangedor para outras pessoas na medida em que eu posso me concentrar em algo e não prestar nenhuma atenção ao que está acontecendo ao meu redor. " (GALL, 1991 apud CSIKSZENTMIHALYI, 2012a, tradução nossa).

Esses exemplos demonstram como a ideia de alcançar o estado de fluxo pode nos fazer imergir plenamente naquilo que estamos focados, esquecendo as distrações do entorno, exatamente como o fazemos ao adentrar nos games, sejam narrativos ou casuais.

Como afirmou o poeta e filósofo da estética Samuel Taylor Coleridge, em 1817, entramos em um estado de suspensão voluntária da descrença, mesmo sabendo que a vida e o curso da humanidade e do mundo fora dessa realidade momentânea permanecem inalterados. Para Csikszentmihalyi (2012a), a atenção está focada em um campo de estímulo limitado. Há concentração total e um completo envolvimento da pessoa que vivencia a situação.

Uma analogia usada pelo autor pode ser utilizada para entendermos a relação entre o prazer de avançar nas fases e desafios do jogo e o conceito de Flow. Csikszentmihalyi (2012b) faz alusão à ideia do termo em uma comparação com o aprendiz de piano. Para ele, um iniciante no aprendizado do piano, munido de suas habilidades básicas, vai incorporando lentamente como tocar as músicas para seu prazer. À medida que sua destreza com o instrumento vai aumentando e as composições tocadas vão se mostrando mais fáceis de serem executadas, a ansiedade do começo vai dando lugar à chateação da repetição e falta de novidade. Neste ponto, o pianista deve tomar a decisão de continuar com o mesmo repertório ou aprender novas músicas que, embora inicialmente mais difíceis, podem tornar tudo mais interessante e motivador. À medida que o interesse pelas novas canções aumenta, o pianista passa a ousar com mais músicas, dominando sua execução até que o marasmo da mesmice retorne, levando-o a novos desafios.

Quando o iniciante é solicitado a executar uma peça mais difícil, os desafios são inesperadamente mais elevados e a única forma de retornar ao estado de Flow é ampliar rapidamente as habilidades para ajustar-se. Em ambos os casos [isto é, aprimorar suas habilidades porque o nível de desafio é muito alto ou muito baixo], o resultado é o mesmo: o indivíduo move-se para uma complexidade plana ou mais elevada” (Csikszentmihalyi, 2012b, p. 66-67).

Gráfico 1 - Canal de Fluxo (Flow)

Em sua obra, composta de vários títulos abordando aspectos complementares dessa ideia central, Csikszentmihalyi observa que não eram apenas artistas, mas atletas, jogadores de xadrez, estudantes e profissionais em inúmeras outras funções no mercado também atingiam estados de fluxo na execução de seus trabalhos, com elevada eficiência de produção e satisfeitos com a própria performance.

2.1 - Flappy Bird: o desafiador voo do pássaro

Csikszentmihalyi indica ainda que o desenvolvimento desse processo exige metas claras para cada passo do caminho.

Em linhas muito gerais, a obra do psicólogo croata especifica que, para atingir esse estado, é necessário, como visto na introdução desta aula, que a tarefa seja simples e objetiva; essa operação deve fornecer ao realizador um feedback instantâneo, sem distrações que possam perturbar a concentração da pessoa envolvida no processo ou capazes de deixá-lo extremamente consciente de suas próprias ações e, não menos importante – especialmente para os games – a tarefa deve ser desafiadora, com equilíbrio adequado entre a habilidade necessária e dificuldade apresentada no projeto.

Se pensarmos em jogos como Pacman, Tetris ou Candy Crush, será fácil observar a aplicação dessas funções determinantes do Flow na dinâmica dos jogos, especialmente em suas mecânicas e regras. No entanto, para além da estrutura sistêmica do game que, em última análise, funciona como a base de um processo interativo, que comunica o conteúdo do jogo com o jogador por meio de vídeo, áudio e da relação de input e output da interface, o Flow deve apresentar-se também nos conteúdos do jogo, que agem como a “alma” do projeto, uma experiência específica idealizada para agir de maneira transformadora para o jogador.

Mais à frente nesse texto, abordaremos experiências que demonstram como games diegéticos também proporcionam estados de Flow por meio do uso dramático da narrativa e da tensão de elementos da história, como visto em sagas épicas nas mídias tradicionais.

Um curioso e recente exemplo de como um jogo simples em sua concepção pode ser contagiante ao ponto de se tornar mania entre os jogadores é o Flappy Bird, criado pelo programador vietnamita Dong Nguyen, em 2013. O objetivo do jogo é claro e o feedback é imediato e preciso: se fracassar, seu pássaro morrerá em segundos. O que confere essa qualidade quase viciante ao game de tentar e continuar jogando partida após partida é o fato do projeto aparentar ser um jogo fácil de ser superado, em virtude de seu visual básico inspirado em jogos de 8 bits e de uma mecânica de jogo já conhecida desde os primeiros games de plataforma. A habilidade exigida pelo projeto, no entanto, é de nível extremamente elevado, o que provoca a frustração inicial de não ter sido capaz de vencer uma trajetória aparentemente fácil, mas que exige atenção e coordenação motora precisa. Como resultado, o desejo de superação do desafio do game faz com que jogadores reiniciem o jogo, aprimorando suas técnicas de condução e buscando melhores performances de jogo e pontuação.

De acordo com Kushner (2014) o game gerou mais de 16 milhões de comentários no microblog Twitter, com a maioria dos jogadores reclamando do nível de dificuldade do jogo e como era difícil desistir de mais uma partida. "[É] o jogo mais chato e ainda assim não consigo parar", comentou um dos jogadores, enquanto outro afirmava que o jogo estava “consumindo lentamente a minha vida”. O mesmo artigo cita outra reclamação enviada ao designer, afirmando que "13 crianças na minha escola quebraram seus telefones por causa de seu jogo, e eles ainda o jogam porque é viciante como o crack”.

Considerando a quantidade de jogos criados e disponibilizados diariamente para consoles e dispositivos móveis por mídia física e online, veremos que são bem poucos os casos de jogos que concentram as qualidades observadas em projetos como Flappy Bird. Ainda que não seja um jogo perfeito ou com todas as características que fazem de um game um clássico, o jogo vietnamita encontrou o ponto que faz com que ansiedade e frustração sejam equivalentes e se alternem na jornada, fazendo com que os jogadores desejem permanecer no desafio por tempo quase indeterminado.

Jogo Flappy Bird

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